I
“A Sort of a Song”
Ars poetica — manual para escrever poemas
Componente autorreflexiva —
reflexão sobre o processo de composição literária (a escrita pensa a escrita)
Escrita poética deve reunir
opostos — antítese entre campos semânticos da suspensão (“slow”, “quiet”,
“wait”) e da velocidade (“quick”, “sharp”, “strike”, “sleepless”) — e
reconciliar dimensões díspares (seres humanos e mundo natural, v. 7 e 8).
Apesar de frágil (implicitamente comparada à flor saxífraga[1]),
tem o poder de rebentar os rochedos (que podem representar a cegueira do hábito
e a insensibilidade face à estética)
Sinais de pontuação
(travessão, parêntesis) manifestam morosidade do processo composicional e da
própria relação entre pensamento e palavra (tendo em conta que subjetividade
modernista é fragmentada) // Contraste com ausência de pontuação nos versos
iniciais, transmitindo a velocidade da “inspiração”
Uso do imperativo — convite
direto ao leitor / escritor (equivalência processos de leitura e escrita)
Cobra metaforiza o
movimento das palavras no papel, representa a progressão do poema (escrito à
mão ou à máquina) // trocadilho implícito entre “writing” e “”writhing” (verbo
que representa o movimento dos répteis) // alternância entre versos longos e
curtos desenha este movimento, quase criando um poema visual // o
encavalgamento (enjambement) sublinha
esta dinâmica rítmica
Cobra é animal da sabedoria
e da tentação (intertexto bíblico)
Relevância do quotidiano — poesia democrática
WCW confere visibilidade a
eventos que a nossa desatenção torna invisíveis; a sua poesia desconstrói o
“rochedo” da rotina que embrutece a perceção, pedindo um olhar atento
Caráter visual da escrita
do autor — Imagismo // nitidez fotográfica, relações interartes são fecundas no
modernismo; WCW tem poemas sobre quadros (“ex. “Landscape with the Fall of
Icarus) e Charles Sheeler pintou quadro inspirado num dos seus poemas (“The
Great Figure”)
Verso livre, vocabulário
acessível — busca de uma linguagem especificamente americana, democrática vs. cosmopolitismo e elitismo de alguns
dos poetas expatriados (em especial T. S. Eliot, cujo “The Wasteland” WCW
abomina)
Movimento do concreto para
o abstrato — “No ideas / but in things)” é o moto do autor
Humor implícito no título
(ironia depreciativa) aponta para o repúdio de um tipo de poesia mais erudita,
em prol de uma linguagem simples retratando ocorrências comuns — este será um
traço que une WCW à geração posterior, nomeadamente os poetas da Beat
Generation, entre eles Allen Ginsberg que o reconhece como seu mentor
II
Este excerto situa-se no
capítulo 19 do romance Their Eyes Were
Watching God (1937), da autoria de Zora Neale Hurston, antropóloga e
escritora da Harlem Renaissance.
A narrativa retrata a busca
de voz de Janie, que vai construindo a sua identidade através de relações
amorosas frustradas (o primeiros marido representa a segurança imposta pela
avó, o segundo, a idealização da própria protagonista, seduzida pelas
aparências), até encontrar Tea Cake e poder assumir o seu lugar na comunidade
circundante, em diversos espaços desde o trabalho até ao lazer, juntando-se aos
contadores de histórias. Será esta mestria como storyteller
que lhe permitirá conquistar a atenção da audiência num momento fulcral em que
a sua vida está em jogo, quando é julgada por ter morto Tea Cake em autodefesa,
após este ter apanhado raiva, ao salvar a mulher durante as enchentes.
O início do excerto descreve a postura corporal dos
ouvintes (“They all leaned over to listen”) para realçar o modo como Janie
consegue captar a sua atenção, tal como se vê ainda quando estes continuam
suspensos, mesmo após ela ter terminado o seu discurso (“She had been through
for some time before [they] seemed to know it”). O poder da autoexpressão surge
aqui como o valor supremo da protagonista, que expressa com dignidade os seus
sentimentos em relação ao último marido e a contradição interna em que se
encontrava quando teve de o matar. O discurso do juiz extrema a situação e
obriga o júri a escolher entre condenação por homicídio, conducente à pena de
morte ou à ilibação.
No entanto, este momento axial para a autonomia de Janie é
transmitido através do discurso indireto livre; ou seja, a sua voz é
mediatizada pelo narrador, como sucede, aliás, ao longo da maior parte do
romance, apesar de o enquadramento narrativo. De facto, no primeiro capítulo,
vê-se a protagonista a regressar a casa, de onde saíra após a morte de Joe
Starks, para se juntar a Tea Cake em Everglades, e a começar o relato das suas
aventuras para a amiga Pheoby. Esta situação de confidência seria ideal para
ancorar uma narrativa na primeira pessoa, mas o facto de Hurston optar pela
mediatização narratorial expressa a nível autorreflexivo, segundo alguns
críticos, em particular Henry
Louis Gates, Jr., a dupla opressão da escritora
afroamericana. Na sua demanda por uma voz singular a protagonista representará,
pois, a própria autora, cuja receção entre os seus pares foi marcada por
incompreensão à época, devido ao seu distanciamento de um tipo de realismo
social interventivo, que representava o negro como vítima politizada, pronta a
rebelar-se contra o sistema de opressão racial.
Na
verdade, Hurston problematiza as políticas raciais e de género coevas,
denunciando o racismo e a misoginia existentes no seio da comunidade negra,
como atestam o episódio com Mrs. Turner, que valoriza Janie apenas pela coloração
mais clara da sua pele, e o final da passagem citada. Aqui, através do recurso
ao dialeto afroamericano, uma característica que irmana Hurston com outros
escritores da Harlem Renaissance, os vizinhos de Janie são citados criticando a
decisão do júri, que atribuem apenas à aparência física desta figura feminina.
O absurdo do seu argumento é gritante, tanto mais que contradiz o discurso de
Nanny no capítulo 2, quando conta a sua estória no tempo da escravatura e todo
o sofrimento por que passara ao longo da vida, declarando — “De nigger woman is
de mule of de world” (29). Em contraste, a irmandade de género atravessa aqui
barreiras raciais e as mulheres brancas, por certo em protesto contra a
violência doméstica de que também seriam alvo, assumem-se como um “muro
protetor” em roda de Janie.
As
tensões que atravessam o romance terão, pois, contribuído para o facto de
Hurston ter sido ostracizada pela comunidade artística da Harlem Renaissance,
marcada por uma hegemonia discursiva masculina que só viria a ser contestada
pelo movimento feminista da década de 1970. A escritora acaba por morrer na pobreza
e o seu legado literário será recuperado por Alice Walker, que reclama esta
linhagem criativa, cumprindo o desejo de continuidade expresso por diversas
outras autoras, como Virginia Woolf (no ensaio A Room of One’s Own) ou Amy Lowell (no poema “The Sisters”).
[1] Aqui WCW joga
com o seu conhecimento médico, pois uma das espécies deste género de plantas
que cresce em solos rochosos usa-se para dissolver os cálculos da bexiga.
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