26/01/2017

Grelha de correção_teste jan. 2017


I
“A Sort of a Song”

Ars poetica — manual para escrever poemas
Componente autorreflexiva — reflexão sobre o processo de composição literária (a escrita pensa a escrita)
Escrita poética deve reunir opostos — antítese entre campos semânticos da suspensão (“slow”, “quiet”, “wait”) e da velocidade (“quick”, “sharp”, “strike”, “sleepless”) — e reconciliar dimensões díspares (seres humanos e mundo natural, v. 7 e 8). Apesar de frágil (implicitamente comparada à flor saxífraga[1]), tem o poder de rebentar os rochedos (que podem representar a cegueira do hábito e a insensibilidade face à estética)

Sinais de pontuação (travessão, parêntesis) manifestam morosidade do processo composicional e da própria relação entre pensamento e palavra (tendo em conta que subjetividade modernista é fragmentada) // Contraste com ausência de pontuação nos versos iniciais, transmitindo a velocidade da “inspiração”
Uso do imperativo — convite direto ao leitor / escritor (equivalência processos de leitura e escrita)

Cobra metaforiza o movimento das palavras no papel, representa a progressão do poema (escrito à mão ou à máquina) // trocadilho implícito entre “writing” e “”writhing” (verbo que representa o movimento dos répteis) // alternância entre versos longos e curtos desenha este movimento, quase criando um poema visual // o encavalgamento (enjambement) sublinha esta dinâmica rítmica
Cobra é animal da sabedoria e da tentação (intertexto bíblico)

Relevância do quotidiano — poesia democrática
WCW confere visibilidade a eventos que a nossa desatenção torna invisíveis; a sua poesia desconstrói o “rochedo” da rotina que embrutece a perceção, pedindo um olhar atento
Caráter visual da escrita do autor — Imagismo // nitidez fotográfica, relações interartes são fecundas no modernismo; WCW tem poemas sobre quadros (“ex. “Landscape with the Fall of Icarus) e Charles Sheeler pintou quadro inspirado num dos seus poemas (“The Great Figure”)

Verso livre, vocabulário acessível — busca de uma linguagem especificamente americana, democrática vs. cosmopolitismo e elitismo de alguns dos poetas expatriados (em especial T. S. Eliot, cujo “The Wasteland” WCW abomina)
Movimento do concreto para o abstrato — “No ideas / but in things)” é o moto do autor

Humor implícito no título (ironia depreciativa) aponta para o repúdio de um tipo de poesia mais erudita, em prol de uma linguagem simples retratando ocorrências comuns — este será um traço que une WCW à geração posterior, nomeadamente os poetas da Beat Generation, entre eles Allen Ginsberg que o reconhece como seu mentor


II

Este excerto situa-se no capítulo 19 do romance Their Eyes Were Watching God (1937), da autoria de Zora Neale Hurston, antropóloga e escritora da Harlem Renaissance.
A narrativa retrata a busca de voz de Janie, que vai construindo a sua identidade através de relações amorosas frustradas (o primeiros marido representa a segurança imposta pela avó, o segundo, a idealização da própria protagonista, seduzida pelas aparências), até encontrar Tea Cake e poder assumir o seu lugar na comunidade circundante, em diversos espaços desde o trabalho até ao lazer, juntando-se aos contadores de histórias. Será esta mestria como storyteller que lhe permitirá conquistar a atenção da audiência num momento fulcral em que a sua vida está em jogo, quando é julgada por ter morto Tea Cake em autodefesa, após este ter apanhado raiva, ao salvar a mulher durante as enchentes.
O início do excerto descreve a postura corporal dos ouvintes (“They all leaned over to listen”) para realçar o modo como Janie consegue captar a sua atenção, tal como se vê ainda quando estes continuam suspensos, mesmo após ela ter terminado o seu discurso (“She had been through for some time before [they] seemed to know it”). O poder da autoexpressão surge aqui como o valor supremo da protagonista, que expressa com dignidade os seus sentimentos em relação ao último marido e a contradição interna em que se encontrava quando teve de o matar. O discurso do juiz extrema a situação e obriga o júri a escolher entre condenação por homicídio, conducente à pena de morte ou à ilibação.
No entanto, este momento axial para a autonomia de Janie é transmitido através do discurso indireto livre; ou seja, a sua voz é mediatizada pelo narrador, como sucede, aliás, ao longo da maior parte do romance, apesar de o enquadramento narrativo. De facto, no primeiro capítulo, vê-se a protagonista a regressar a casa, de onde saíra após a morte de Joe Starks, para se juntar a Tea Cake em Everglades, e a começar o relato das suas aventuras para a amiga Pheoby. Esta situação de confidência seria ideal para ancorar uma narrativa na primeira pessoa, mas o facto de Hurston optar pela mediatização narratorial expressa a nível autorreflexivo, segundo alguns críticos, em particular Henry Louis Gates, Jr., a dupla opressão da escritora afroamericana. Na sua demanda por uma voz singular a protagonista representará, pois, a própria autora, cuja receção entre os seus pares foi marcada por incompreensão à época, devido ao seu distanciamento de um tipo de realismo social interventivo, que representava o negro como vítima politizada, pronta a rebelar-se contra o sistema de opressão racial.
Na verdade, Hurston problematiza as políticas raciais e de género coevas, denunciando o racismo e a misoginia existentes no seio da comunidade negra, como atestam o episódio com Mrs. Turner, que valoriza Janie apenas pela coloração mais clara da sua pele, e o final da passagem citada. Aqui, através do recurso ao dialeto afroamericano, uma característica que irmana Hurston com outros escritores da Harlem Renaissance, os vizinhos de Janie são citados criticando a decisão do júri, que atribuem apenas à aparência física desta figura feminina. O absurdo do seu argumento é gritante, tanto mais que contradiz o discurso de Nanny no capítulo 2, quando conta a sua estória no tempo da escravatura e todo o sofrimento por que passara ao longo da vida, declarando — “De nigger woman is de mule of de world” (29). Em contraste, a irmandade de género atravessa aqui barreiras raciais e as mulheres brancas, por certo em protesto contra a violência doméstica de que também seriam alvo, assumem-se como um “muro protetor” em roda de Janie.
As tensões que atravessam o romance terão, pois, contribuído para o facto de Hurston ter sido ostracizada pela comunidade artística da Harlem Renaissance, marcada por uma hegemonia discursiva masculina que só viria a ser contestada pelo movimento feminista da década de 1970. A escritora acaba por morrer na pobreza e o seu legado literário será recuperado por Alice Walker, que reclama esta linhagem criativa, cumprindo o desejo de continuidade expresso por diversas outras autoras, como Virginia Woolf (no ensaio A Room of One’s Own) ou Amy Lowell (no poema “The Sisters”).


[1] Aqui WCW joga com o seu conhecimento médico, pois uma das espécies deste género de plantas que cresce em solos rochosos usa-se para dissolver os cálculos da bexiga.

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