28/02/2018

Amigos,

A pedido da professora Diana, deixo abaixo as minhas respostas ao teste de janeiro. Espero que de alguma forma ajudem alguém. Desejo-vos um bom novo semestre.

Até breve,

Félix

1. O excerto de “The Wasteland” a que temos acesso, e que, na obra, encerra a primeira das suas cinco secções, demonstra nitidamente alguns dos principais paradigmas da escrita poética modernista que regem o extenso poema de TS Eliot. Em vários sentidos, aliás, quase não importa que estejamos diante apenas um fragmento da obra, uma vez que, podemos argumentar, ela se compõe de numerosos estilhaços de realidade, mesmo no interior de cada secção. Comecemos por esta característica fragmentada do poema, considerando que descreve um tema mais vasto da literatura modernista, muito influenciada pelas novas correntes de pensamento em torno da memória, da construção da experiência individual e da própria concepção da consciência íntima. Todos estes avanços estão na raíz da literatura modernista e surgem, de uma forma ou de outra, no poema de TS Eliot, e até no excerto com o qual nos deparamos.

Para o explicarmos é necessários termos presentes três autores: Friederich Schiller, Bergson e Freud. Não nos alongando em nenhum dos três, podemos concluir que Bergon e Freud desenvolvem uma teoria fragmentada da História e do indivíduo, respetivamente, que podemos ver em Eliot e noutros autores. Da mesma maneira que em “Wasteland” o leitor se depara com uma obra profundamente polifónica, intertextual, que muda drasticamente de ambientes, personagens, tempo e espaço, também em Bergson concluímos que a memória – e, por arrasto, a experiência – não ocorre de maneira organizada, mas, antes, é produto do passado e do presente, do consciente e do inconsciente, que se compõem através da interconetividade de vários elementos e só se distinguem através do pensamento abstrato. Em “Wasteland”, e no fragmento a que temos acesso, vislumbramos a viagem entre esses momentos desconexos da experiência humana. Se a Bergson acrescentarmos Freud e a teoria de que o consciente humano está escudado permanentemente pelo pensamento abstrato e, além dele, somarmos Schiller e a sua teoria de que “a arte não reside na exclusão de certas realidades, mas na inclusão absoluta de todas as realidades”, temos alguns dos instrumentos necessários para perceber as realidades cacofónicas e retalhadas de “Wasteland”, do excerto que nos é dado e da literatura modernista.

De regresso ao texto de Eliot, podemos compreender também o contexto de produção da obra e a realidade moderna europeia que molda muita da produção poética modernista do início do séc. XX. A “unreal city” de que o sujeito poético fala no primeiro verso é a Londres para onde TS Eliot emigra vindo dos Estados Unidos – ele pertence a um grupo de três poetas modernistas estado-unidenses emigrados, com H.D. e Ezra Pound. Esta Londres tem os seus contornos irreais em parte devido ao “fog” que cai sobre a cidade, mas, principalmente, pelo avistamento de uma multidão de ex-militares, que sobreviveram, em grande parte mutilados, à I Guerra Mundial. Os seus corpos estropiados parecem justificar a surpresa e o horror do sujeito poético quando este exclama “I had not thought death had undone so many”. A excursão dos soldados moribundos, traumatizados no seu andar, de olhar dirigido aos pés, diz respeito não apenas ao tema da morte e renascimento que atravessa a obra “The Wasteland”, mas também à realidade moderna que moldou a produção literária do séc. XX. Afinal de contas, o avistamento dos soldados mutilados, nos quais o interior dos corpos, em alguns casos, se confunde com o exterior, contribui para o desmantelamento do sujeito e dos objetos que avistamos na poesia modernista. Estas aparições também contribuem para a própria fragmentação do tempo, uma vez que os soldados trazem as feridas e traumas de um evento que, em última análise, já terminara. Trata-se de “um viver heroicamente sem fim ou início”, nas palavras de Gertrude Stein, algo a que muitos militares se viam condenados na sua mutilação e trauma.

Mais adiante encontramos aquele que neste excerto é o primeiro exemplo da estratégia de polifonia que atravessa “The Wasteland” e ao qual Fiona Shaw concede relevos e nuances de interpretação que de outra maneira ficariam ocultos. O sujeito poético pergunta a um dos soldados, claramente designando-o como tal, se o cadáver que plantara no ano anterior já havia brotado. Aqui encontramos, mais nitidamente, o tema da vida e morte que cruza “The Wasteland”, poema escrito por Eliot num período conturbado e ensandecido. Muito do poema – e isso é evidente neste excerto – fala de uma certa impossibilidade de morrer, como Eliot ilustra com referências intertextuais ao mito do “Fisher King” e da mulher que no mito é responsável pela travessia dos mortos, que envelhece e, porém, não morre: a Sibila.

Neste tema, para além da tensão contínua entre a vida e a morte, podemos regressar à conceção da experiência como um contínuo fragmentado a que a poesia modernista tenta fazer corresponder a sua forma. O caráter autotélico, hermético, que faz equivaler a erudição mais profunda à cultura mais vulgar, a sua permanente intertextualidade, nunca chegando a um fim natural – “The Wasteland” termina sem um ponto final – são características desta obra de Eliot que a aproximam ao esforço modernista de conferir unidade através da multiplicação de realidades.

2. O período modernista e o início do séc. XX testemunham vários movimentos de emancipação no mundo, desde o eclodir das guerras anticoloniais, por exemplo, ao início dos grandes movimentos artísticos e políticos pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos, e, como diz respeito a Willa Cather, à sua obra, e aos movimentos literários,  também à afirmação da mulher artista num domínio controlado pelo patriarcado. Cather, como uma das primeiras escritoras profissionais nos Estados Unidos, como homossexual e autora de várias obras nas quais as mulheres surgem violentadas como castigo pelos seus desejos de independência, é um nítido exemplo de como os movimentos feministas e as políticas de género jorraram para a produção literária dos EUA no começo do século.

É verdade que o conto “Flavia and Her Artists” contém uma crítica pungente aos salões literários da época, à forma como as famílias estado-unidenses cuja fortuna parecia surgir súbita e magicamente pagavam ostensivamente pelo acesso a artistas, através do mecenato, e também à forma como estas sociedades artísticas se realizavam na opulência e num certo novo-riquismo. Tudo isso se encontra neste conto de Cather, até na figura quase indiferente do marido de Flavia, que herdou a fortuna do seu pai, o inventor de uma qualquer máquina industrial, e que com o seu dinheiro paga o contacto voyeurista que a mulher deseja ter com uma casta de artistas que, em última análise, e como demonstra a figura do escritor Monsieur Roux, a desprezam. Também é verdade que o conto descreve o fluxo migratório e um tanto pedante da elite cultural americana, que prezava acima de tudo o exílio na Europa e naquela que era considerada a capital artística do mundo, Paris. Porém, a grande e mais vasta crítica de Willa Cather em “Flavia and Her Artists” dirige-se ao desprezo e castigo lançados contra a mulher e a mulher artista, que por aqueles dias do início do séc. XX se vinha libertando – ou tentando libertar-se – dos papéis de género determinados na sociedade vitoriana e plasmados no poema “The Angel in The House”, de Coventry Patmore.

A mulher artista estado-unidense e modernista não é estranha à supressão do seu génio e repressão da emancipação que ele pode representar. Como Cather, também as poetas H.D., Amy Lowell e Marianne Moore representaram nas suas obras a figura da sexualidade feminina e da mulher independente, embora em parte se vissem obrigadas a fazê-lo sob códigos metafóricos – as flores como genitália feminina em Lowell, por exemplo, que, como algumas destas artisitas, era homo ou bissexual. Em parte, a afirmação do génio feminino faz-se na literatura com o mero acesso à profissão ou com a publicação das suas obras de forma independente, como H.D. só consegue a muito custo, tendo antes de se desvincular do espetro controlador e patriarcal de Ezra Pound, que como o pioneiro do movimento imagista a manietou, assim como a Lowell. Um outro instrumento de afirmação feminista, para além das apresentações metafóricas da sua sexualidade e poder, e o seu acesso ao plano artístico, encontra-se na representação da mulher artista como mártir ou como uma figura de proporções corporais fantásticas.

Encontramos esses exemplos no conto de Cather e também em “June Recital”, de Eudora Welty. No primeiro caso, e no excerto que nos é apresentado, podemos encontrar a figura da mulher artista em duas personagens: Miss Broadwood e Frau Lichtenfeld. Ambas apresentam características andróginas, uma prática coinhecida como “gender-crossing” que permite à autora apresentá-las desvinculadas das imagens constrangedoras da mulher como um ser frágil e deslocado. Se Ms. Broadwood surge como a evocação de um “nice, clean, pink-and-white boy”, Frau Lichtenfeld fá-lo como uma “gigantress”, uma figura de dimensões inacreditáveis que não se conforma ao papel de género que lhe é atribuído: “it has never been my fate to be fitted into corners”, diz.

Apesar de Miss Broadwood e Imogen sofrerem pelas suas tentativas de afirmação artística ao longo do conto, nenhuma figura é tão punida como Miss Eckhart, por coincidência de origem também alemã, e que em “June Recital” representa a impossibilidade de uma ação artística feminina, especialmente numa pequena localidade rural do sul dos EUA, e que, vedada de o fazer, reprimida pelo patriarcado, cai na loucura e tenta o suicídio fazendo-se imolar com o seu objeto artístico: o piano (e metrónomo).


Em Miss Eckhart, as consequências de uma vida proibida na arte levam a um extremo tal de intolerância que o seu corpo, a início grande e portentoso, como o de Frau Lichtenfeld, mirra, emagrece e torna-se frágil. Para Miss Eckhart, que, quando acede à arte, surge também como uma figura andrógina, sem género definido, a impossibilidade de aceder à ocupação de artista representa-se metaforicamente através do incêndio que alastra ao seu cabelo, também um símbolo comum da sexualidade feminina, como se a vila de Morgana a rejeitasse por completo e à sua vida independente.